Blog do Marcial Lima - Voz e Vez: Ruim de conta

domingo, 8 de dezembro de 2013

Ruim de conta

“Quem não tem intimidade com números vira jornalista.” Para vitaminar a maldosa generalização, muitas páginas de jornais e revistas, reportagens de TV ou rádio e outras tantas na internet tentam provar que as más línguas estão corretas. Qual seria o diagnóstico para o divórcio entre a precisão jornalística e a matemática que tanto afeta a credibilidade da informação?

Mais do que a falta de afinidade com a matemática, talvez a paternidade de manchetes e informações disparatadas seja apenas a fé cega em fontes que chutam números – e uma boa dose de preguiça de repórteres e editores em fazer contas simples para tentar confrontá-las. Afinal, mesmo que não saiba como fazer cálculos básicos, o jornalista pode sempre recorrer a quem saiba – ou a uma calculadora que some, divida, multiplique e subtraia.

No caso da fé cega, talvez entre em campo também certa falta de jogo de cintura para enfrentar a fonte e pedir mais explicações – pois é comum jornalistas não entenderem seu papel de “perguntador” ao apenas evitar transparecer ignorância sobre os fatos. O vácuo deixado pela vaidade no dever de apurar é ocupado, então, pelas barrigas engolidas no cotidiano.

“Os teatros da região bateram todos os recordes de arrecadação”, apontava uma reportagem do jornal O Globo, de 1º de fevereiro de 2010, sobre os resultados de bilheteria da temporada 2009 dos teatros londrinos. E continuava, citando “mais de US$ 800 bilhões em vendas de ingressos. De quebra, pela primeira vez atingiram a marca de 14 milhões de espectadores”. Bastava dividir o valor apontado pelo número de espectadores para descobrir que cada ingresso teria sido vendido pelo módico preço médio de... US$ 57.142,86!!!

Mesmo que o jornalista em questão não tivesse disposição para (ou soubesse como) fazer essa conta, poderia ter recorrido a outro elemento comum no bom jornalismo: a comparação. E o próprio Globo publicou, em sua edição do dia seguinte, um número comparável como ordem de grandeza, dando conta de que o orçamento para 2010 das Forças Armadas americanas seria de US$ 708 bilhões. Melhor seria os Estados Unidos transformarem seus quartéis numa grande Broadway, não?

Imprecisão vs. desatenção

Precisão precede até o bê-á-bá do bom jornalismo – assim como generalizações e lugares-comuns são pecados mortais. No dia 20 de junho deste ano, ao anunciar que a presidente Dilma se reuniria com seus “principais ministros” para debater a onda de manifestações, a imprensa brasileira deu uma notícia comparável a “tem muita gente nas ruas”... Seriam esses ministros 3, 13, 23 ou os 39? A imprensa, desse modo, inventou o segundo escalão ministerial e, no fim das contas, nada informou.

Recomenda-se nos melhores manuais de redação a troca de “grande maioria” por “maioria ampla ou absoluta” ou de “alguns” ou “principais” pelo número preciso. Na falta dele, cabem projeções (desde que identificadas como tal nos textos). Se, mesmo assim, o texto não dá ideia precisa, melhor recorrer às porcentagens. Afinal, 51% e 95% exprimem mais a realidade da tal maioria do que um simples adjetivo.

A imprecisão é um dado de realidade e não há nenhum crime em não saná-la em uma reportagem. Afinal, “cerca de” ou “estima-se” são armas para informar quando não há rigor numérico disponível. O problema, porém, está em apontar uma ordem de grandeza sem fornecer o critério de comparação. Dizer que este é “o segundo maior PIB do mundo em 2012” não informa nada se não for acompanhado de quanto (e de quem é) o primeiro. Jornalismo de verdade vai além do fato: deve se cercar de informação para produzir notícia, permitir comparações e análise.

A desatenção do jornalista, por sua vez, ocupa o corner oposto no ringue da imprecisão. Em 2001, uma reportagem do Washington Post informava que US$ 667 mil do US$ 1,3 milhão que o Exército da Salvação da capital do país arrecadou durante o Red Kettle (evento anual em que caldeirões vermelhos, que dão nome à campanha, são espalhados pelas cidades para coletar doações) eram provenientes de postos localizados em frente à rede de supermercados Giant. “É um pouco menos que a metade do total arrecadado pelo grupo na ocasião”, informou o jornal – que foi corrigido por um leitor mais atento que indicou ser esse montante um “pouco mais” da metade...

Erros recorrentes

O próprio ombudsman do Washington Post, Andrew Alexander, publicou em 2010 um artigo sobre os equívocos numéricos de seu jornal. Numa análise das edições de três meses do jornal, apontou que eram raros os dias em que não eram publicadas correções de números. “Alguns dos erros foram relacionados a estatísticas; outros, à matemática”, escreveu Andrew. “Muitos são simples falta de atenção, como o de uma matéria que informava que as regras dos planos de saúde afetariam 180 americanos – e não 180 milhões.” “Eis um erro que está evidente”, pode pensar um jornalista em defesa da categoria. Amplifique o mesmo erro em outro cenário, como fez o jornalista Craig Silverman, em seu livro Regret the Error (Union Square Press, 2007).

“É incrível o que um erro numérico pode causar”, escreveu Craig. “Quando uma organização de mídia divulga de maneira imprecisa que uma grande empresa perdeu bilhões de dólares em vez de milhões, a matéria inteira vai por água abaixo.” Além disso, informação equivocada dessa maneira pode causar prejuízos à empresa – e ficar sob suspeição de servir a interesses escusos.

Com a velocidade da informação nos dias que correm, na era digital, com enormes quantidades de informação sendo rapidamente disponibilizadas, redirecionadas, repetidas e reproduzidas, a precisão numérica nunca foi tão importante. E isso mesmo com as correções instantâneas, possíveis nos sites. Afinal, quantas pessoas voltam a uma mesma notícia para averiguar se houve alguma mudança nos dados informados? E no mundo analógico, quantas pessoas buscam nas erratas do jornal do dia seguinte as correções para o que leu no dia anterior?

O resultado prático das imprecisões e erros pode ser a sua eternização: algum dia, daqui a cinco ou dez anos, ao pesquisar sobre o assunto, alguém vai simplesmente tomar como correto o número publicado hoje – e igualmente sem se preocupar em checar se houve errata nas edições seguintes. Há, porém, quem não se importe com isso.

“Temos uma cultura na qual podemos dizer que somos jornalistas e, portanto, terríveis em matemática e achamos charmoso quando alguém na redação diz que não sabe fazer contas”, confessa Sarah Cohen, ex-editora do Washington Post, para logo em seguida fazer um mea-culpa: “Nunca entendi por que achamos isso algo bom e escrever nomes de maneira errada, ruim”.

Falácia cultural

Estudo da Universidade da Carolina do Norte, conduzido em 2003 pelo professor Scott Maier, tentou buscar respostas para a inquietação de Sarah, ao analisar as habilidades matemáticas de grupos de jornalistas. O resultado espantou: nos testes indivi-duais, a maioria absoluta dos jornalistas demonstrou possuir competências básicas com números; nos grupos focais, porém, os mesmos jornalistas demonstraram, em maior ou menor grau, desconforto geral, falta de confiança em lidar com números. “Eles claramente tinham a habilidade, mas também a autopercepção de que não poderiam fazer contas”, explicou Maier. “Acredito que, ao se deparar com números, os jornalistas não questionam e abrem mão da investigação.”

Quando Darrell Huff escreveu, em 1954, seu livro Como Mentir com Estatística, atualmente fora de catálogo na versão em português, mas ainda disponível no original, How to Lie with Statistics (W.W. Norton & Company, 1993), cristalizou-se um entendimento equivocado a respeito do título e da arte da estatística, sobre a qual até o escritor Mark Twain teria dedicado atenção, segundo uma frase a ele atribuída: “There are three kinds of lies: lies, bloody lies and statistical lies” (“Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras malditas e mentiras estatísticas”, em tradução livre).

Leitura minimamente atenta da obra de Huff, entretanto, mostra que, para o autor, as pessoas mentem usando estatísticas. “Tal como o ‘minúsculo toque de pós, o pequeno estojo de ruge’, a estatística faz com que muito fato pareça ser o que não é”, sentencia. Portanto, não seria a maquiagem (ou a estatística) a mentir, mas quem a usa para esse fim.

“A linguagem secreta da estatística, tão atraente em uma cultura maníaca por fatos, é empregada para criar sensação, inflacionar, confundir e simplificar em excesso”, estabelece Huff. E faz a ponte entre o universo dos dados e o do jornalismo. “Métodos e termos estatísticos são necessários para comunicar dados agregados de tendências sociais e econômicas, condições dos negócios, inquéritos de opinião pública ou dados de recenseamento. Mas, sem escritores que usem com honestidade e compreensão as técnicas e sem leitores que saibam o que eles significam, o resultado pode ser absurdo.” Portanto, o livro realmente não prega (ou ensina) a mentira como veículo para a estatística.

Precisão jornalística

Outro autor a dedicar atenção ao uso informativo dos números, e que fez o primeiro livro que trata da questão exclusivamente com foco no jornalismo, foi Philip Meyer, autor de The New Precision Journalism (Indiana University Press). Lançado em 1991, e com uma edição revista de 2001, o livro trata da aplicação de métodos científicos de investigação em uma cobertura jornalística.

“Houve um tempo em que tudo que se precisava no jornalismo era dedicação à verdade, muita energia e algum talento para escrever”, define Meyer na abertura do primeiro capítulo de seu livro. “Você ainda precisa dessas coisas, mas elas não são mais suficientes. O mundo ficou tão complicado, o aumento da informação disponível tão explosivo, que o jornalista precisa ser filtro e transmissor, organizador e intérprete, além de coletar e entregar fatos. Precisa saber como colocar a informação na página ou no ar, também deve saber colocá-la na cabeça do receptor. Em resumo, um jornalista deve ser administrador de bases de dados, processador de dados e analista de dados.”

A leitura vale a pena, realmente. Porém, segue aqui uma breve amostra de por onde o autor enxerga o caminho mais seguro para aproximar o jornalismo da pesquisa:

** aprofundar o trabalho de reportagem, refinando cada vez mais a informação;

** fazer a transição entre coletores de informação x processadores de informação;

** fazer uso de métodos científicos de pesquisa;

** entender o jornalismo mais como ciência e menos como arte (ciência social x literatura);

** aprender a usar computadores para a apuração jornalística (mas sem nunca abrir mão da apuração tradicional):

>> análises estatísticas

>> pesquisas de opinião

>> informações públicas tabuladas

>> ferramentas de informática

>> bancos de dados

A contribuição de Philip Meyer foi tão grande para o jornalismo que, em 2005, foi criado um prêmio com seu nome pela Investigative Reporters and Editors, Inc. (IRE) (organização independente voltada para o aprimoramento do jornalismo investigativo, criada em 1975, com sede em Nova York). Ali são reconhecidas as reportagens de apuração mais sofisticada, que usam análise estatística e bancos de dados com informações públicas. Caso queira conhecer alguns vencedores, eles se encontram no site da IRE.

Apesar disso tudo, Meyer aponta que há forte resistência entre jornalistas na aplicação do “jornalismo de precisão”, sobretudo devido “a uma compreensão particular dos ideais de objetividade dos jornalistas”. Segundo o autor, na visão dos profissionais, não caberia ao repórter e editores “assumir posição diante dos dados e fatos, mas apenas apresentar diferentes opiniões sobre os temas contraditórios”. E a conclusão a que ele chega é que “partindo dessa premissa, muitos jornalistas concluíram que os meios de comunicação não deveriam fazer pesquisas e análises, e sim apenas publicar os resultados fornecidos por outros órgãos e fontes”.

Excesso de confiança

A se tomar a posição dos jornalistas que preferem apenas trabalhar com os números fornecidos por suas fontes, há que se lembrar de alguns casos em que, apesar da idoneidade de quem transmitia as informações, o erro era grosseiro (e acabou sendo comprado por repórteres e editores apenas pelo “selo de qualidade” que a fonte possuía). Foi o que aconteceu com a Organização das Nações Unidas (ONU), em um caso sobre prostituição infantil no Nordeste brasileiro na década de 1990.

Relatório da organização avaliou em 500 mil o número de prostitutas infantis nas zonas urbanas do Nordeste – informação que foi exaustivamente repercutida pela imprensa à época. Em 1997, o professor Antonio Fernando Beraldo, em artigo publicado no site Observatório da Imprensa, fez reflexão interessante sobre esse dado: “No NE, a população total feminina (de acordo com o censo de 1991) era de 21.701.330 pessoas. Considerando-se que 60% dessas moram nas grandes cidades, tem-se um total de 13.020.798 mulheres. Vamos supor que a faixa etária de uma prostituta infantil seja de 10 a 14 anos (cerca de 15% da população). Desta forma, tem-se cerca de 1,9 milhão de meninas” (ver, no Observatório, “O número-notícia“). Será mesmo que uma entre quatro meninas nessa região é uma prostituta?

Outro exemplo em que a ONU quantificou exageradamente algo relativo ao Brasil ocorreu em 2012. “ONU cobra Brasil por mortes em abortos de risco”, dizia a manchete do site do Estadão em 18 de fevereiro daquele ano. “Entidade afirma que debate sobre atual legislação não justifica o fato de 200 mil mulheres morrerem em cirurgias clandestinas”, apontava o olho da reportagem, cujo lead era o seguinte: “O governo de Dilma Rousseff foi colocado contra a parede ontem por peritos da ONU, que acusam o Executivo de falta de ação sobre a morte de 200 mil mulheres a cada ano por causa de abortos de risco. Eles pedem que o país supere suas diferenças políticas e de opinião para salvar essas vítimas”.

Vamos aos números, calculados pelo jornalista Reinaldo Azevedo em seu blog à época:

** o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 contabilizou 1.034.418 mortes, sendo 591.252 homens (57,2%) e 443.166 mulheres (42,8%);

** ainda segundo o IBGE, o número total de mortes de mulheres em idade reprodutiva, isto é, excluindo-se as idosas e as crianças, nesse período, foi de aproximadamente 52,7% (233.548 mulheres);

** como a ONU considera que, dessas, 200.000 mortes são devidas a abortos de risco, sobram aproximadamente 33.500 mortes para serem divididas por assassinatos, doenças circulatórias, câncer, acidentes de trânsito, doenças do aparelho respiratório, infecções – entre tantas outras causas.

Pelo que se vê, escolher o jornalismo por falta de intimidade ou de vocação para entender números pode significar, no final das contas, ser um péssimo jornalista. Claro que ninguém precisa virar expert em números para ser um bom repórter e entregar bom jornalismo aos seus interlocutores. Porém, a falta de um mínimo de refinamento ao lidar com dados numéricos e de faro para cercar a fonte com dúvidas cabíveis são o fiel da balança entre uma grande reportagem e uma barriga enorme...

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Júlio Figueiredo é coordenador acadêmico de Pós-Graduação da ESPM; Jorge Tarquini é coordenador da Pós-Graduação em Jornalismo com ênfase em Direção Editorial da ESPM